O mercado de seguros é altamente complexo, envolvendo diversos processos para administrar as apólices vigentes, precificar e ofertar novos negócios, renovar apólices, tratar as demandas dos clientes bem como regular e processar os pagamentos dos sinistros. Adicionalmente à essa complexidade do modelo de negócios, existe ainda a intrínseca inter-relação entre as seguradoras em si e suas redes externas; como por exemplo, corretores, rede credenciada, prestadores de serviços, entre outros.
Não é de surpreender, portanto, que a situação da COVID-19 apresente diversos desafios, de forma ampla, para as seguradoras conseguirem manter as suas operações na medida em que as formas de trabalho usual sofrem uma severa disrupção por conta da mudança de contexto.
Nesse sentido, como as seguradoras estão se saindo, quais são os pontos críticos - e quais as mudanças de mais longo prazo em relação às operações que poderemos ver no futuro como reflexo do que estamos vivenciando atualmente?
Com todos os executivos das seguradoras que temos conversado, um aspecto sobressai de imediato: uma mudança envolvendo um número elevado de profissionais migraram para o trabalho remoto. Isso também foi percebido em diversos outros setores, naturalmente. Na maioria dos países, algo em torno de 90% dos colaboradores estão agora trabalhando de casa, com somente uma pequena parcela trabalhando na empresa, em trabalhos críticos que não permitem sua execução de forma remota. Em países como a China, onde o surto do vírus atingiu o seu pico antes, os colaboradores começaram a retornar aos escritórios; porém, mais provavelmente, no regime de revezamento.
O feedback que temos recebido é de que houve alguns acidentes de percurso no início, mas que agora está funcionando bem na maioria dos casos. As seguradoras têm infraestrutura de hardware em nível suficiente - os notebooks, os dispositivos móveis e os sistemas de conectividade remota estão fazendo frente aos desafios. Como no caso de outras empresas, também existe uma ampla utilização de ferramentas de vídeo conferência.
Em muitos aspectos, a situação tem acelerado de forma significativa a tendência (e uma aspiração) que já existia. Muitas seguradoras têm avaliado maneiras de aumentar sua eficiência operacional e conectividade, com uma menor dependência de colaboradores trabalhando em locais físicos. O fato de que elas tenham colocado isso em funcionamento em apenas duas ou três semanas, ao invés de dois ou três anos, é uma enorme realização em si, em uma escala de tempo que a maioria não poderia ter imaginado.
Essa rápida reformulação, em um curto espaço de tempo, significa que certos princípios e acompanhamentos são mais importantes do que nunca. Uma comunicação clara, efetiva e frequente da liderança é essencial para manter os colaboradores informados de forma que eles possam entender as prioridades, conforme o cenário se desenvolva ou mude. O envolvimento também é crítico - desde os gerentes organizando 'cafés virtuais' com suas equipes para repassar o que precisa ser feito, mantendo o espírito da equipe elevado e escutando quaisquer preocupações. Além de manter chamadas frequentes como pontos de controle em algumas áreas específicas do trabalho para entender questões que possam afetar o desempenho e mensurar a evolução em relação aos entregáveis esperados.
Um dos principais desafios está no fato de que tudo isso está acontecendo ao mesmo tempo, o que provoca um aumento repentino no número de contatos dos clientes. As questões podem envolver dúvidas sobre seguro viagem, doenças graves, cobertura de saúde, interrupção nos negócios, entre outros temas. Os clientes estão recorrendo às seguradoras para saber o que eles podem ter cobertura ou não antes de efetivamente solicitar a abertura de um sinistro. No Reino Unido, por exemplo, uma seguradora declarou que eles apresentaram um crescimento impressionante na consulta de clientes, nos sinistros e nas reclamações relacionadas ao seguro viagem. O serviço de atendimento ao cliente (SAC), via call center, relacionado aos produtos de previdência também estão recebendo um número significativo de consultas que vão desde entender alterações no saldo considerando a volatilidade do mercado financeiro nos últimos meses até opções para resgate, considerando que os clientes estão enfrentando dificuldades financeiras crescentes.
Todavia, outros produtos, tais como seguros de automóveis, ficaram mais silenciosos - com uma queda acentuada em sinistros ao longo das últimas semanas.
Isso também pode indicar que as seguradoras necessitem avaliar os seus recursos internos e como estão configurados - mudar potencialmente os colaboradores que forem necessários para a área de sinistros, mesmo que esse não seja o seu trabalho de rotina. Elas podem adaptar as equipes de especialistas também - considerando a transferência de colaboradores de segmentos como automóvel para áreas que estão com maior incidência de sinistros, como o seguro viagem, seguro saúde, por exemplo. Essa maneira mais ágil de trabalhar pode ser uma das novas formas de trabalhar que está surgindo dessa situação.
Certamente, aquelas seguradoras que apresentam processos digitais mais avançados na área de subscrição, sinistros e processos administrativos estão em uma posição mais robusta em relação às outras seguradoras, mesmo que o tempo de processamento seja mais lento atualmente do que o observado em condições normais. Aquelas seguradoras que não estão com essas competências desenvolvidas, ou aquelas que contam somente com fluxos de trabalho baseados em tecnologias não tão avançadas, provavelmente estão enfrentando mais dificuldades. Existe o risco de se perder clientes para os concorrentes mais preparados digitalmente que estejam progredindo mais rapidamente, especialmente em ramos de seguros de pessoas e saúde, onde a paciência por parte dos clientes com processos não digitalizados pode ser menor.
Em paralelo à explosão no número de contatos dos clientes, as seguradoras internacionais tem apresentado uma preocupação relacionada à queda no número de seus colaboradores que poder diminuir em alguns momentos no caso de colaboradores adoecerem devido ao vírus (ou ficarem menos produtivos no trabalho devido às responsabilidades de cuidar de pessoas próximas ou familiares). Há estimativas de que, em países gravemente afetados, a força de trabalho disponível poderia encolher por volta de 30-40% no cenário mais pessimista. Algumas seguradoras estão planejando de forma ativa em planos contingências, como as observadas na Alemanha, onde certas operadoras estão conversando com prestadores de serviços terceiros sobre a possibilidade de ajudá-los com consultas e tratamento de sinistros, caso necessário.
Para aliviar essa pressão e apresentar níveis adequados de suporte ao cliente, muitas seguradoras internacionais estão facilitando o processo de regulação de sinistros, reduzindo alguns requisitos e simplificando os documentos necessários. Todavia, ainda permanece um desafio lidar com sinistros complexos e/ou de alto valor, quando avaliar evidência física e obter relatórios de especialistas pessoalmente é frequentemente uma parte essencial do processo de análise. Não há respostas simples nesse caso, em situações que estejam acontecendo no momento - mas podemos acompanhar a uso crescente de drones, ou de tecnologias envolvendo coleta de imagens, para ajudar os reguladores de sinistros que não possam realizar visitas presenciais.
Também há uma perspectiva mais ampla relacionadas às apólices que entram em jogo: situações de regulamentações locais que não prevêem o trabalho digital, por exemplo, em Hong Kong, as assinaturas físicas (também chamadas de assinaturas “úmidas”), ao invés das assinaturas eletrônicas, ainda são necessárias para a maioria dos contratos, e isso é determinado por lei. As seguradoras podem flexibilizar seus procedimentos internos para atender às exigências de forma extraordinária, mas não podem alterar leis ou regulamentações nacionais ou federais. Aspectos assim aumentam ainda mais o nível de dificuldade da situação.
Todos esses fatores levantam outra questão predominante: a mitigação contra um potencial risco de fraude. Temos ouvido falar em um aumento nas tentativas de fraude em solicitações de sinistro como, por exemplo, pagamento de sinistro de viagem em que os clientes depois de terem sido recusados pelo agente de viagens ou pela companhia aérea pelo cancelamento de uma viagem, recorrem à sua seguradora e relatam sobre alguma doença não existente ou outra condição para tentar garantir o pagamento de uma indenização por algum prejuízo.
Contudo, o risco de fraude não está restrito às solicitações de sinistro por parte dos clientes. O trabalho remoto que está atualmente tão disseminado, provavelmente pode provocar um aumento nas tentativas de hackers que buscam explorar as vulnerabilidades em sistemas com diversos objetivos - obter dados dos clientes, acessar ilegalmente informações financeiras, ou causar a interrupção da disponibilidade de serviços. Nesse sentido, os colaboradores devem receber diretrizes claras sobre os protocolos de conectividade remota, e práticas recomendadas, incluindo orientações sobre o compartilhamento de arquivos e a distribuição de dados. É essencial garantir que as equipes cibernéticas e forenses trabalhem diariamente, de forma conjunta, caso necessário, com as equipes de TI, à medida que o vulnerabilidade dos sistemas pode aumentar, monitorando quaisquer problemas e fazendo uma varredura na busca de atividades incomuns.
Outra área operacional relevante está relacionada às interações das seguradoras com as corretoras e corretores de seguro. Algumas corretoras que não possuem uma infraestrutura de TI adequada estão tendo mais dificuldade em oferecer serviços administrativos - nos Estados Unidos, por exemplo, há relatos de situações de call centers com um número de colaboradores abaixo do necessário deixando de encaminhar chamadas para os Serviços de Atendimento ao Cliente (SAC), que estão em casa para prestar suporte, ou emitir Certificados de Seguro. Obter informações sobre renovação - incluindo informações sobre exposições e coberturas - é algo desafiador. As seguradoras precisam procurar maneiras de reduzir a quantidade de informações necessárias de corretoras para realizar as renovações, por exemplo, ao aplicar as premissas de dados e maximizando a utilização de informações acessíveis publicamente. As seguradoras devem revisar as maneiras pelas quais suas equipes de apoio às operações podem trabalhar com as corretoras para ajudar no fluxo de negócios.
As corretoras - e algumas vezes os clientes diretamente - também começaram a pedir às seguradoras que operam nos Estados Unidos que revisem a base de premissas utilizadas nas coberturas de forma a realizar ajustes para reduzir os custos, quando possível, por exemplo, um hotel cuja cobertura é baseada no número de quartos ocupados pode solicitar agora a revisão para que a precificação seja baseada no faturamento, dada a dramática queda na ocupação. Isso se aplica a muitos setores afetados significativamente pela situação, tais como o hoteleiro, viagem, manufatura e logística. As seguradoras podem precisar do apoio de consultoria atuarial para lidarem com o desafio operacional de ajustar rapidamente os modelos de precificação em um mercado em rápida transformação.
Outro aspecto importante é a aceleração da utilização de plataformas digitais que o advento COVID provoca no mercado como forma de manutenção dos níveis de distribuição de produtos de seguros.
A China foi um dos primeiros países a serem impactados por esse vírus. Percebemos as seguradoras se movendo rapidamente para auxiliar os seus estipulantes de maneiras novas e diferentes, por exemplo, algumas seguradoras estão oferecendo mais flexibilidade nos períodos de carência referentes aos pagamento de prêmios, isenções em relação a determinadas fases de seu processamento de sinistros para acelerar o pagamento de indenizações, redução da necessidade de alguns documentos, etc. Notamos essa tendência ocorrendo em outras seguradoras no mundo inteiro. Tudo isso exigirá que os processos operacionais se ajustem e se adaptem aos tempos atuais em um ritmo que provavelmente não era imaginado antes da pandemia da COVID-19.
O setor de seguros está um pouco atrás em relação a outros setores em termos de sua jornada digital. Tudo isso levou a uma aceleração das expectativas dos clientes do ponto de vista digital, o que desafia as seguradoras considerando uma perspectiva de prontidão para atender às demandas. A “The Digital Insurer” - (TDI) publicou recentemente um artigo que discute esse fenômeno como sendo o “ponto de inflexão digital1”.
Podemos observar diversas mudanças...
Olhando adiante, é provável que essa situação resulte em diversas mudanças:
Até o momento, o setor está se mantendo bem. Porém, compreensivelmente, pontos de atenção estão aparecendo. A piora da situação depende tanto da eficácia das ações que as seguradoras irão adotar para tratá-los como da gravidade da pandemia a partir de agora.
Independentemente das incertezas, o setor de seguros está trabalhando em um bom ritmo, e com um enorme comprometimento, em oferecer aos seus colaboradores, clientes, canais de distribuição, stakeholders e comunidade, o apoio e atendimento necessários.
Colaboradores:
Claudia Fell, Head of Strategy Consulting Insurance, KPMG na Alemanha
Mark Longworth, Global Insurance Advisory Lead, KPMG International and Head of Insurance Consulting, KPMG no Reino Unido
Matthew McCorry, Insurance Advisory Lead, KPMG nos Estados Unidos
Lee-Han Tjioe, Digital Insurance Partner, KPMG China
Érika Ramos – Sócia-líder do segmento de seguros, KPMG Brasil.
Gabrielle Hernandes, Gerente Sênior de Regulatório | Financial Services da KPMG Brasil
⑴ Phipps, S. (n.d.). TDI PoV: Industry Warning - digital tipping point is approaching insurers faster than expected. Disponível aqui.